domingo, 26 de fevereiro de 2012

OS RESULTADOS DOS PLANOS DE AUSTERIDADE

Austeridade enriquece os ricos na Espanha

Há momentos em que a realidade de um país lembra um romance. Outros, uma tragédia. Há até casos em que parece uma poesia.

A realidade da Europa, hoje, pode ser traduzida por um panfleto contra as políticas de austeridade que tem sido aplicadas ao Velho Mundo como se fossem a única alternativa para enfrentar a crise. Elas confirmam que elas só ajudam a tornar os ricos cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres.
Um balanço do que ocorre na Espanha demonstra que a austeridade, na verdade, tem sido a forma mais rápida e mais fácil para os ricos e endinheirados recuperar sua posição na partilha da renda e na distribuição do conforto.

Para quem imagina que a crise européia limita-se ao pesadelo grego, o relatório da respeitada Caritas, divulgado ontem, mostra dados alarmanetes:

– o número de lares sem qualquer renda cresceu 34% e envolve 580 000 famílias;

– as execuções hipotecárias cresceram quatro vezes:

– o índice de pobreza cresceu 5 pontos em relação a 2007; é 10% superior ao da Holanda e 13% superior ao da França e dos países nordicos; entre 21países europeus, só não é pior que o da Romenia e da Letonia;
Um aspecto essencial dessa nova realidade é o aumento da desigualdade, que explica o apoio de parcelas endinheiradas da população às medidas de austeridade. Não é um apoio desinteressado, pelo bem do país. É um apoio com bases materiais.
Em apenas três anos, a diferença de renda entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres passou de 5,3 vezes em 2007 para 6,9 no final de 2010. É o maior aumento da desigualdade entre os 27 países da União Européia. Considerando as propostas de aprofundar a austeridade do governo conservador do PP, essa situação só pode piorar.
Um indicador expressivo é a perda de bem-estar nos lares: 30% das famílias reduziram o consumo de carne. Em 3,3% não se têm qualquer fonte de renda, nem trabalho nem de prestações por desemprego ou da previdência social. 2007.
Desmentindo a visão conservadora sobre a crise, o estudo confirma a visão de que, em vez de cortar investimentos, o governo espanhol deveria elevar gastos sociais não só para melhorar bem-estar da população — mas para gerar produção e consumo num país onde o desemprego mantém-se estagnado em 20%.

Essa é a discussão da Europa hoje.

Fonte: “Vamos combinar”, blog do Paulo Moreira Leite.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

ANDRÉ SETARO FALA SOBRE GLAUBER ROCHA

GLAUBER ROCHA: RUPTURA E REVELAÇÃO

A realização de Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, em 1964, sobre ser um acontecimento para a consagração do Cinema Novo, traumatiza duramente toda uma geração de cineastas por meio de seu estilo esfuziante, determinador de um verdadeiro impacto estético. O filme, que consta da relação do eminente crítico francês Claude Beylie como uma das obras-primas do cinema em todos os tempos, comprova, na revisão, uma atualidade surpreendente ao contrário de outros de sua época datados e envelhecidos. O tempo, comprova-se mais uma vez, é o melhor juiz no julgamento da obra cinematográfica.

Filmado em Monte Santo, produzido pelo carioca Jarbas Barbosa, e segundo longa metragem de Glauber Rocha - o primeiro, Barravento (1959/1962), Deus e o diabo na terra do sol surge, no panorama do cinema brasileiro, como um divisor de água, considerando ser uma obra renovadora na sua estrutura narrativa que consolida uma invenção formal inédita entre as películas realizadas no país. Ópera sertaneja ou, talvez, melhor dizendo, concerto barroco, cujas influências alienígenas notórias não poluem o estilo, o filme, no entanto, possui um toque pessoal e uma maneira toda particular na manipulação dos elementos da linguagem cinematográfica.

Há, na estrutura narrativa barroca de Deus e o diabo na terra do sol, a influência da tragédia grega - o cego Júlio como fio condutor; a de John Ford - na exploração dos grandes espaços em planos abertos como na seqüência da morte da mãe do vaqueiro Manoel e o tiroteio que vem a seguir; a de Akira Kurosawa - na gestualística do personagem de Corisco (Othon Bastos), o rodopio quando morre; a de Sergei Eisenstein - a matança dos beatos em Monte Santo por Antonio das Mortes se estrutura de acordo com as coordenadas da montagem eisensteiniana da escadaria de Odessa em O encouraçado Potemkin; a de Luis Buñuel - a morte do beato por Rosa dentro da Igreja, entre muitas outras. Se, à primeira vista, isso pode parecer uma colcha de retalhos, na verdade, porém, há uma confluência que se canaliza para uma demonstração estilística particular e própria, instauradora daquilo que se chama de uma escrita glauberiana.

Deus e o diabo na terra do sol é, sem sombra de dúvida, o maior filme do cinema brasileiro, ainda que alguns críticos vejam em Terra em transe um avanço ainda maior. Mas em ambos se verifica uma manifestação no sentido de quebrar a linguagem cinematográfica dos cânones acadêmicos inaugurados por David Wark Griffith com o estabelecimento da montagem narrativa em 1914 com O nascimento de uma nação (The birth of a nation), e que configuraria, quase como uma norma gramatical, a lei da progressão dramática - apresentação do conflito, desenvolvimento deste, clímax e desenlace. Sergei Eisenstein, na década de 20, em plena efervescência da transformação revolucionária soviética, subverte-a com a teoria da montagem intelectual ou ideológica. Mas o padrão cinematográfico continua sendo o da narrativa griffithiana.

Se já em sua obra de estréia, Barravento, se insinua um touch eisensteiniano - na cena em que Firmino (Antonio Pitanga), desesperado, fala a pescadores impassíveis - e se percebe que ele se encontra em outro espaço fílmico, Deus e o diabo na terra do sol constitui-se num amálgama de influências diversas cujo processamento se faz em tom original, podendo ser considerada a primeira obra com a quintessência da escrita glauberiana, já que em Barravento Glauber Rocha entrou após um golpe com 2/3 do filme já executados. Mas se, em Deus e o diabo na terra do sol, ainda que haja seqüências que procuram o dinamismo do corte em movimento, a sua maioria, entretanto, é de planos longos, com a câmera a passear entre os personagens, demorando-se na captação de seus gestos e emblemas. O mesmo não vem a acontecer com o processo de criação cinematográfica de Terra em transe, cuja montagem é sincopada, os planos curtos, a câmera sempre acelerada em torno dos personagens e, em alguns casos, sem que, com isso, se apague a marca do autor, a presença da mise-en-scène wellesiana.

Na filmografia glauberiana, percebe-se um realizador sempre em transe, sempre em busca, sempre incomodado, sempre numa procura desesperada de traduzir a realidade brasileira num discurso quase alucinatório, servindo-se do próprio mundo para recriá-lo de maneira completamente original. O maior cineasta brasileiro? Sim, nenhum outro foi capaz, como ele, de recriar a realidade nacional numa tradução revolucionária. Na obra que se segue a Terra em transe, não considerando, aqui, Câncer - que é o pioneiro do Cinema Underground, embora Glauber nunca tenha assumido esta paternidade, O dragão da maldade contra o santo guerreiro, o realizador tenta traduzir para as imagens em movimento a linguagem da literatura de cordel numa mistura, poder-se-ia dizer, insólita, com a tragédia transposta para a aridez dos cenários sertanejos.

As duas grandes manifestações da arte glauberiana estão em Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe, vindo o cineasta, após estes dois fulgurantes momentos da expressão cinematográfica, a um reprocessamento de suas constantes temáticas que atingiu pleno êxito apenas em O dragão da maldade contra o santo guerreiro. O exílio europeu não lhe proporciona um estímulo de renovação nem de equilíbrio como autor, considerando, neste caso que, num autor, não se pode exigir permanente renovação, pois ele se caracteriza pela variação sobre um mesmo tema - Bergman, Fellini, Chaplin, Antonioni, Mizoguchi, Buñuel, et caterva. Mas Cabeças cortadas e O leão de sete cabeças - ou, como queria Glauber, em cinco idiomas: Der leone have sept cabeças, revistos hoje, são simplificações temáticas que culminariam, entre outros filmes, com o genial Di Cavalcanti - uma exceção na segunda fase do autor de Deus e o diabo na terra do sol, no radicalismo da montagem atômica de A idade da terra, canto de cisne do cineasta que viria a morrer num aziago agosto de 1981. Mas, como se costuma dizer, no macrofilme glauberiano, que é toda a sua filmografia, uma obra singular, ainda que menor, não pode ser considerada, por isso, menos importante.

André Setaro é crítico de cinema e professor de comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Fonte: Portal terra.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

UMA REFLEXÃO SOBRE A LITERATURA

OS NÃO LIVROS

Silêncio por escrito

Por Sérgio Augusto em 17/01/2012 na edição 677

Reproduzido do Estado de S. Paulo [14/01/2012]

Para que tantos livros?, pergunto-me toda vez que entro numa livraria. Nas semanas que precedem o Natal, o assombro é ainda maior. As livrarias abarrotadas deveriam me encantar, mas elas, sinceramente, me assustam um pouco.

“Demasiados libros”, queixou-se o poeta e ensaísta mexicano Gabriel Zaid, num ensaio de cento e poucas páginas que, inevitavelmente, materializou-se como livro, no início da década. Porcarias em demasia – deformo, pero no mucho, a tradução. Às vezes penso que a tão temida e discutida crise da indústria editorial talvez seja uma hipérbole, ou não haveria tanta gente escrevendo e publicando qualquer coisa para gratificar o ego e cevar a vaidade. E me lembro de Sócrates.

Sócrates não escreveu uma linha, e no entanto “inventou” a filosofia. Sem gastar tinta, Jayme Ovalle enriqueceu mais a vida cultural brasileira do que muitos escribas do passado e do presente. Graças apenas a quatro cartas contra a guerra, endereçadas a André Breton, Jean Vaché entrou para a história da literatura francesa da primeira metade do século passado.

O que me faz lembrar de todos aqueles autores e personagens literários que, por agudo senso de autocrítica, desencanto com o alcance das palavras, respeito ao próximo ou motivo mais nobre, optaram pelo silêncio, preferiram ser parcimoniosos ou mesmo ágrafos a entregar-se à grafomania. De Rimbaud, por exemplo, que aos 22 anos trocou em definitivo a poesia pela aventura. De Juan Rulfo, que ficou 30 anos em voluntário jejum literário. Do catalão Felipe Alfau, precursor do pós-modernismo, que passou em branco as últimas cinco décadas de sua vida. E de Monsieur Teste, alter ego de Paul Valéry, que não só desistiu de escrever como atirou sua biblioteca pela janela.

Adorno achava impossível escrever versos depois do Holocausto. Jay McInerney repetiu-lhe o exagero quando as torres gêmeas desabaram. Razões mais imponderáveis podem afetar ou mesmo esterilizar a criatividade de poetas e escritores. Por acreditar que “tudo já havia sido dito”, La Bruyère não produziu mais que uma obra de textos curtos, embora essenciais para a compreensão dos costumes na França no século 17. Hugo von Hoffmanstahl projetou-se em pelo menos dois personagens, Lorde Chandos e Hans Bühl, para dar vazão à sua crescente descrença na linguagem, incapaz de “penetrar no âmago das coisas” e “expressar nossas emoções”. Bühl, o desiludido protagonista da comédia Der Schwierige (O Difícil), chega mesmo a confessar que entende menos a si próprio quando fala do que quando está calado.

George Steiner, um dos primeiros teóricos da “poética do silêncio”, deixou de escrever pelo menos sete livros por não ter suportado o desgaste emocional e a pressão psicológica que seus temas lhe impuseram. Os livros foram abortados, mas renderam um ótimo ensaio confessional de 209 páginas, editado há três anos com o título de My Unwritten Books. Os livros que afinal não escrevemos, diz Steiner, geram mais que um vazio, são uma “sombra ativa, irônica e angustiante”, a nos lembrar sempre de vidas que deixamos de viver e caminhos que deixamos de trilhar. Mas eles nos dão a chance de “errar melhor”, se soubermos aproveitá-la.

De um aforismo de La Bruyère – “A glória ou o mérito de certos homens consiste em escrever bem; o de outros, em nada escrever” – Enrique Vila-Matas pinçou a epígrafe perfeita para as fascinantes divagações sobre o que rotulou de “literatura do não”, sobre romancistas e poetas que nada ou quase nada escreveram, contidas em Bartleby e Companhia, assunto de um debate que a Cosac Naify e a livraria Cultura programaram para o próximo dia 26.

Em Bartleby, o parabólico amanuense de Herman Melville, Vila-Matas identificou a origem de uma vertente fundamental da literatura contemporânea. Bartleby é um personagem kafkiano avant la lettre, símbolo e síntese do silêncio criativo ou da impossibilidade de escrever, que, para Kafka, é a premissa básica da literatura. Numa de suas parábolas, o silêncio das sereias afigurava-se mais ameaçador (e “inescapável”) que seus cantos.

Quando as palavras se saturam de selvageria e mentiras, nada fala mais alto que um poema não escrito. Steiner desenvolveu essa tese num ensaio publicado há quase 50 anos, em boa parte articulado em torno do sentimento de impotência criativa de Hoffmanstahl e outros autores austríacos dos anos 1920 (destaque para o Hermann Broch de Os Sonâmbulos), todos ressabiados, em graus diversos, com a deterioração semântica da língua alemã e a instabilidade crônica da Europa Central. Um lamento sobre a “perda da palavra” concluía a ópera Moisés e Aron, que Arnold Schoenberg compôs em 1933, justamente no ano da ascensão do nazismo ao poder.

Steiner sugeriu que se fizesse um estudo entre as parábolas do silêncio de Kafka, Hoffmanstahl, Broch, Karl Wolfskehl, e o filósofo Wittgenstein. Para o autor do Tractatus Logico-Philosophicus, o mais expressivo de sua obra era o que não havia sido escrito.

Blaise Cendrars flertou um bocado com a ideia de uma bibliografia de obras jamais escritas. Marcel Bénabou foi além, publicando em 1986 um manifesto em favor da “literatura em potencial”, intitulado Pourquoi Je n’ai pas Écrit Aucun de Mes Livres (Por Que não Escrevi Nenhum de Meus Livros). Já publicara meia dúzia, até aquela data, mas queria vender o peixe de que as obras que só ficaram na sua imaginação tinham lá seu valor e existiam virtualmente, em alguma biblioteca borgesiana de ficções fantasmagóricas. Com notas de rodapé que Vila-Matas confessadamente adoraria ter escrito.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

PAULO MOREIRA LEITE COMENTA SOBRE O CHILE DE ALLENDE

Livro esconde ações da CIA contra Allende

09:32, 5/02/2012

Paulo Moreira Leite

Cultura, Estados Unidos, Política Tags: Allende, Chila, CIA

Um dos traços característicos de muitos livros contemporâneos é uma opção que se poderia chamar de história ideológica. São obras que pretendem usar fatos e personagens como instrumento para sustentar a opinião de seus autores. Não pretendem avançar o conhecimento, nem debater fatos estudados a partir de análises novas. Seu objetivo é fazer propaganda.

Poucas obras demonstram essa finalidade com tanta evidência como o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, de Leandro Narloch, e o Guia Politicamente Incorreto da América Latina, parceira de Narloch com Duda Teixeira. Os dois retratam o Brasil e sobre o Continente é a de um universo de bufões, malandros e impostores, onde poucos se salvam.

Os autores pretendem demonstrar que brasileiros e latino-americanos são cidadãos de um universo piada, que até hoje foram retratados por maus historiadores que apenas inventaram para embelezá-los.

Só para você ter uma ideia. Na página 151 do livro sobre o Brasil, Leandro Narloch descreve o país como se fosse um paciente com “ diversos males psicológicos. Bipolar, oscilaria entre considerações muito negativas e muito positivas sobre si próprio. Obsecado com sua identidade, em todas as sessões aborreceria os colegas perguntando “Quem sou eu?”, “Que imagens devo passar”?, “O que me diferencia de vocês?”

Não consigo achar graça nesse tipo de comparação que, a meu ver, sequer corresponde ao retrato que os brasileiros fazem de si próprios. Eu acho coisa de colonizado.

Você encontra muitas pessoas em dúvida sobre sua identidade na rua? Perguntam se são paraguaios, armenios ou ingleses na frente do espelho? Não sabem para quem torcer na Copa do Mundo? Como é que os brasileiros vêem o país, neste momento?

Mas a liberdade de expressão inclui o direito de dizer besteira e todo mundo pode abusar.

Só não precisa exagerar nas inverdades. Estou falando do livro Guia Politicamente Incorreto da América Latina, que publica um capítulo sobre o presidente chileno Salvador Allende, deposto por um golpe militar em 1973.

Você talvez tenha ouvido falar que a professora Maria Ligia Prado, da Universidade de São Paulo, já desmascarou a dupla num artigo publicado no Estadão. A professora demonstrou que os dois fizeram uso errado de informações sobre um trabalho universitário de Allende, numa tentativa de sustentar, erradamente, que o presidente do Chile apoiava idéias nazistas na faculdade.

Depois de mostrar o erro grotesco dos autores, a professora recordou que “o bom historiador e o bom jornalista devem checar suas fontes, estudá-las, compará-las, garantir sua credibilidade e depois transcrevê-las com correta isenção.”

Fique sabendo que tem mais bobagem por aí. A nova descoberta é deste blogueiro.

Coerentes em seus esforços permanentes de ridicularizar os nativos e glorificar os colonizadores, Narloch e Teixeira tentam reduzir o papel da CIA no golpe que derrubou Allende.

Como se fosse a verdade mais simples do mundo, eles escrevem na página 274 que a CIA atuou no país “entre 1962 e 1970”.

A data é precisa: Allende foi eleito em 1970 e tomou posse em 1971. Se a CIA parou de atuar em 1970, não pode ser responsabilizada por nada de ruim que ocorreu no país depois disso.

Referindo-se ao golpe, em setembro de 1973, Narloch e Teixeira sublinham que a CIA deixara o país antes dessa “data dramática.”

Pena que não foi assim. O engraçado é que tanta gente conhece o papel da CIA na queda de Allende que chega a ser espantoso que se tente negá-lo.

Basta abrir o livro de memórias de William Colby, com uma longa carreira em altos cargos na CIA, para descobrir que eles não falam a verdade.

Com a autoridade de quem era diretor da CIA em 1971– e o Chile era uma prioridade mundial da Casa Branca naquele momento – e assumiu a direção de operações clandestinas no fatídico ano de 1973, Colby escreve com a cautela de um executivo fiel às cláusulas de confidencialidade de seu trabalho, mas mesmo assim faz um relato instrutivo da atuação do serviço secreto americano no Chile, antes e depois da posse de Allende.

O livro de Colby nem é novo. Tem mais de 30 anos. Foi publicado em 1978, cinco anos depois do golpe, e traduzido em várias línguas. Li a versão em frances, “30 anos de CIA,” comprada na década de 80. Naquela época, Questionada por seu envolvimento em diversos crimes e conspirações, a CIA decidiu abrir alguns segredos. O livro de Colby pode ser visto como parte deste processo. Não conta tudo, esconde bastante, mas revela alguma coisa.

Falando sobre os trabalhos realizados no Chile a partir de 1971, Colby escreve na página 287: “as quantias que ali se gastava representavam uma parte considerável do orçamento” da agencia. Esclarece: “milhões de dólares.”Explica: “era preciso apoiar os partidos centristas, os jornais de oposição, os grupos sindicais e as entidades estudantis.”

Quem estuda a queda de Allende, sabe a importancia dessas revelações. Em poucos meses de governo, o conflito entre aliados e adversários de Allende transformou a vida dos chilenos num caos. Ocorreram greves de caminheiros, mercado negro de alimentos, vários atos de sabotagem. Quando fala de “milhões de dólares” no financiamento dos inimigos de um presidente eleito, Colby confirmava as conhecidas acusações de que a Casa Branca atuava nos bastidores para derrubá-lo.

Ao retirar a CIA de cena, os autores fabricam uma versão falsa da história. Pelo que Colby revela, é uma falsificação e tanto.

Colby sustenta, no livro, a tese de que a CIA não participou do golpe militar de setembro de 1973. Não é preciso acreditar nessa versão, que já foi desmentida até pelo embaixador americano em Santiago.

Com sua versão, Colby assume a postura padrão dos altos funcionários do governo americano, que sempre sustentam em manifestações públicas que seu país não comete crimes e respeita as instituições e à democracia. Mesmo assim, as revelações mostram a CIA dentro do caos, fazendo o possível para enfraquecer Allende de todas as maneiras e em todas oportunidades. Dessa maneira, o livro deixa claro que a CIA ajudou os golpistas.

Colby reconhece, na página 289, que a ajuda aos adversários de Allende “gerava tensões na sociedade chilena.” Admite que é “indiscutível” que a “política oficial dos Estados Unidos” era hostil a Allende, que ela tentou dirigir “o capital privado contra o Chile, a bloquear créditos internacinais que poderiam beneficiar o país e o que militares americanos mantinham relações calorosas e permanentes com seus homólogos chilenos.”

Em sua versão conveniente, Colby garante que o plano era esperar até 1976, quando haveria nova eleição presidencial, para garantir uma vitória da oposição.

Mas na página 288 ele admite que, em 1973, quando ocorreram eleições para deputado, planejava-se arrancar Allende da cadeira num golpe parlamentar. Fala, mais uma vez, da ajuda à oposição. Em tom de lamento, escreve: “o apoio (da CIA) aos candidatos anti-Allende permitiu o ingresso na Câmara de Deputados uma maioria de representantes hostis ao presidente marxista. Faltaram apenas dois votos para que formasse uma maioria de dois terços que teria permitido afastá-lo do posto.”

Na mesma página, o diretor da CIA esclarece que os principais destinatários dos “milhões de dólares” eram partidos “moderados” e não organizações de extrema direita, como a lendária “Patria y Libertade”. Colby diz que essa organização embolsou pouco, pelo menos da CIA: 38 00o dólares em 1970 e 7 000 em 1971.

Colby conta que a intervenção da CIA naquele país foi discutida na Casa Branca, num encontro com a presença de Richard Nixon em pessoa. Recorda que por ordem expressa de Nixon a CIA tentou impedir a posse de Allende assim que ele venceu as eleições. Pretendia-se dar um golpe militar mas o plano foi abandonado diante da constatação de que René Schneider, o comandante-em-chefe das Forças Armadas era legalista até a medula. (Numa ação até hoje mal esclarecida, um grupo de extrema-direita, que tinha contatos com a CIA, matou Schneider numa tentativa de sequestrá-lo).

Com franqueza de bom memorialista, Colby faz uma revelação sobre os políticos chilenos e os maus costumes do serviço secreto americano. Lembra que, como Allende foi eleito com 36% dos votos, sua posse precisava ser aprovada pelo Congresso chileno. Depois de abandonar a ideia de um golpe militar, o plano seguinte do governo americano, então, foi conseguir dinheiro “para tentar corromper um número suficiente de deputados para votar contra Allende”. Não deu certo, admite. A verba foi economizada porque a operação não era “factivel,”ou seja, os parlamentares não estavam à venda.

Confesso que a descoberta de um erro tão constrangedor num livro que acusa os historiadores de esconder fatos desagradáveis e divulgar versões convenientes não chega a ser espantoso mas é lamentável. Os “politicamente incorretos” foram lançados num ambiente de impunidade intelectual e muita referência. Chegam a ser levados à serio. O critico musical Nelson Motta e o colunista Luiz Felipe Pondé fazem comentários elogiosos na contra-capa de um dos livros. Será que um deles abriu o livro para saber que talento genial de Noel Rosa foi reduzido a fazer “marketing da pobreza”? Ou que Florestan Fernandes deixou de ser sociólogo para se tornar historiador?

Meu Deus…

Fonte: Vamos Combinar, blog do Paulo Moreira Leite.