segunda-feira, 28 de novembro de 2011

JÚLIO VERNE

JÚLIO VERNE (1828-1905)

O melhor repórter do futuro

Por Sérgio Augusto em 22/11/2011 na edição 669

Reproduzido do suplemento “Sabático”, do Estado de S.Paulo, 19/11/2011: intertítulos do OI

Do primeiro Jules (ou Júlio) Verne ninguém esquece. O meu foi em quadrinhos: Vinte Mil Léguas Submarinas, na versão que lhe deu a Edição Maravilhosa (n.º 10, abril de 1949), ilustrada por Henry C. Kiefer. Um epifania infantil, sem dúvida, superada, cinco anos mais tarde, pelo filme de Richard Fleischer e, antes deste, pela imersão adequada no próprio romance, traduzido na íntegra não me recordo mais por quem. Sempre por aí, em edições de variado pedigree, ainda é o best seller do autor e acaba de ganhar outra, caprichada, da Zahar (tradução de André Telles, 456 págs., R$ 59,00), com as indispensáveis ilustrações de Alphonse de Neville e Édouard Riou.

Verne não foi apenas o contador de histórias mais imaginoso de todos os tempos – uma espécie de Leonardo da Vinci da ficção –, mas também o criador de uma mitologia singularmente estruturada a partir das crenças filosóficas e científicas de sua época. Encantou Proust, Rimbaud (cujo Bateau Ivre seria uma recriação poética e ébria do Nautilus de Vinte Mil Léguas Submarinas), Raymond Roussel, Julio Cortázar, Nietzsche (cujo Zaratustra seria a reencarnação filosófica do capitão Nemo), Michel Butor (que vislumbrou a presença do escritor nas pinturas de Max Ernst, Rousseau e na poesia de Lautréamont).

Entre nós, não foi diferente. Data de 1875, com A Ilha Misteriosa ainda fresca nas livrarias da França, a primeira ficção brasileira de inspiração verniana: O Doutor Benignus, de Augusto Emilio Zaluar. Outras haveria, nenhuma com a qualidade literária e a sutileza de Lições de Abismo, a “viagem ao centro da Terra” de Gustavo Corção.

Um avatar de Lúcifer

Interessado em ciência desde menino, como Voltaire, Balzac e seu assumido mestre Edgar Allan Poe, o visionário de Nantes foi o produto literário mais delirante que o cientificismo do século 19 gerou com os olhos voltados para o século 20. Verne intuiu e imaginou (ou inventou entre aspas) diversos prodígios mecânicos, químicos e até eletrônicos, como o submarino (o do holandês Cornelius Drebell, dois séculos mais novo que o Nautilus, não passava de um bolsão de couro), o escafandro, o batiscafo, o dirigível, o helicóptero, o trator e o automóvel, o gás asfixiante, o canhão de longo alcance, a fotografia em cores, o hidroavião, a vitrola, o cinema, a televisão, os computadores, a bomba atômica, o cinema em 3-D – e um vasto etc. Seu recorde nessa especialidade, tudo leva a crer, jamais será ultrapassado.

A paixão pelo experimentalismo passou-a a seus alter egos: o capitão Nemo (precursor de Drebell e também de Jacques Cousteau), Robur (precursor de Santos Dumont), o capitão Hatteras (que foi verificar a existência de um mar livre no polo Ártico), o professor de Viagem ao Centro da Terra (que foi validar in loco a teoria do fogo central), para ficarmos só nos mais conhecidos. Mas a vaidade, o excesso de autoconfiança e o messianismo dos cientistas o atemorizavam. Robur, o conquistador que em 1886 surge como um protótipo do admirável homem novo moldado em Nemo, mais parece um avatar de Lúcifer ao ressurgir, uma década mais tarde, em O Senhor do Mundo. Não foi por acaso que, no cinema, entregaram esse papel a Vincent Price.

Colonialismo por imperialismo

Além das profecias, utopias e distopias, Verne notabilizou-se como um intérprete glutão dos grandes acontecimentos políticos e sociais do século 19, como um correspondente de guerra e conflitos que nunca precisou sair de seu gabinete. Em seus romances “cobriu” a guerra dos bôers na África, a resistência de El Hadji Omar às tentativas francesas de conquistar o Senegal, o estabelecimento da autoridade chilena nos Andes, a guerra de Secessão americana, a venda do Alasca e outros territórios pelos russos, a corrida do ouro na Califórnia e na Austrália, as pressões do governo Theodore Roosevelt sobre a América Central e o Caribe, a insurreição Taiping na China Central, a guerra de independência da Grécia, a guerra da Crimeia, os movimentos de emancipação nacional dos húngaros, escoceses, irlandeses, búlgaros e noruegueses, a eclosão do anarquismo na Itália, Rússia, França e na América. E, em A Jangada – 800 Léguas pelo Amazonas, a proclamação da República no Brasil.

Muitas posições políticas assumidas por seus personagens conflitam com as do conservador que ele sempre foi, defensor da ordem a qualquer preço, da mulher no fogão ou num canto a tricotar, adversário dos que apoiavam Dreyfus, das sufragistas e dos communards de Paris. Vinte Mil Léguas Submarinas talvez seja sua aventura mais pessoal, a mais contaminada por suas secretas simpatias libertárias.

Nemo termina abjurando seus princípios e questionando sua misantropia. Seu lamento final – “Deus todo-poderoso! Basta! Basta!” – foi uma concessão ao editor Hetzel e ao público. Verne e Hetzel discutiram extensamente sobre a identidade política de Nemo. Hetzel queria justificar as ações de Nemo como uma consequência de sua luta contra a escravidão, mas Verne não aceitou: para ele, Nemo afundava o navio inglês simplesmente porque fora provocado. Mas é claro que o escritor, e não apenas o comandante do Nautilus, considerava a escravidão um dos “horrores da civilização”. Hetzel, pragmático, era contra a escravidão porque o seu fim, segundo os economistas da época, representaria um importante salto para o futuro e resultaria na ampliação do mercado consumidor.

As sociedades industriais, então, trocavam o colonialismo pelo imperialismo. Atento a todos os seus movimentos, Verne inseriu-os em sua ficção. E assim foi que o futuro ganhou um grande repórter.

***

[Sérgio Augusto é jornalista e colunista do Estado de S.Paulo]

Fonte: Observatório da Imprensa.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

UM DEBATE INTERESSANTE SOBRE O CAPITALISMO

O capitalismo como religião

Enviado por luisnassif, qui, 17/11/2011 - 11:00

Por Marco Antonio L.

Do IHU on-line

A teologia mundana do viver em sociedade

Na ordem imposta pelos monges e clérigos do mercado, não há mais lugar para a democracia. A reportagem é de Benedetto Vecchi, publicada no jornal Il Manifesto, 11-11-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Um livro muito particular. Ele nasce de uma discussão pública entre filósofos, críticos de arte, sociólogos, para depois ser enriquecido pelos textos que constituem o pano de fundo teórico ao qual os participantes do encontro fazem referência. A sua descontinuidade, no entanto, não é um limite, mas sim um dos motivos de interesse.

Já o título – Il capitalismo divino. Ed. Mimesis, 160 páginas – ilustra bem o campo temático em que ele deve ser colocado, mesmo que o andamento da discussão provoque certamente uma sensação de perda. O encontro, que contou com a participação de Boris Groys, Jochem Hörisch, Thomas Macho, Peter Sloterdijk e Peter Weibel, realizou-se em 2004, isto é, quando nada fazia supor que, dali a três anos, o desmoronamento dos empréstimos subprime e a avalanche da chamada "dívida soberana" levantariam dúvidas sobre a fragilidade do capitalismo. No entanto, muitos dos elementos que surgem da reflexão – e dos textos postos no apêndice, de Walter Benjamin, Max Weber, Friderich Engels e Slavoj Zizek – são de grande atualidade.

O ponto de partida é que o capitalismo se tornou uma religião. A referência é a um ensaio escrito por Walter Benjamin em 1921 – que agora é reproposto com uma nova tradução pelos Editori Riuniti, que começaram a publicar os escritos políticos do teórico alemão em uma edição organizada por Max Palma –, onde se afirmava que o capitalismo serve para dar respostas, assim como acontecia no passado com as religiões, às preocupações, às ansiedades e aos sofrimentos dos homens e mulheres. Benjamin, no entanto, advertia que é uma religião cultural, que não tem dogmas a propor como preceitos, mas justamente respostas mutáveis ao longo do tempo e do espaço.

Com relação a essa "provocação", os autores muitas vezes escolhem o caminho mais mundano da constatação de que o capitalismo se apresenta como uma verdade revelada, que não tolera dúvidas ou contestações.

Dada essa constatação, o andamento da discussão apresenta, ao contrário, motivos de atualidade. Quem limpa o campo de possíveis mal-entendidos é Peter Sloderdijk. O filósofo alemão defende que uma forma de capitalismo esgotou a sua força motriz, perguntando-se qual será a ética que acompanhará a sua evolução. Seguramente, não será a protestante, ou cristã, evocando o famoso ensaio de Max Weber, mas sim aquelas – o plural é obrigatório – que vêm das religiões "orientais". O taoísmo, o xintoísmo, o confucionismo, se poderia acrescentar, porque estabelecem a imanência de uma visão das relações sociais fundamentadas na harmonia e na ausência de conflitos, elementos garantidos por formas estatais "maternalistas", isto é, que cuidam não apenas dos corpos, mas também das almas dos súditos.

O Estado, expulso pela porta das ideologias liberais ocidentais, entra novamente pela janela com o específico papel, diria Michel Foucault, pastoral. Desse ponto de vista, o capitalismo contemporâneo pode abrir mão da democracia – no fundo, essa é a característica principal do chamado neoliberalismo –, mas não do Estado, que deve regular a vida social para garantir harmonia, mas também para dar o contexto em que se possa fornecer respostas às perguntas, às inquietações, aos sofrimentos humanos. Assim, se o capitalismo é uma religião, o Estado é o seu templo, ou melhor, a sua igreja.

Com essa tese, Peter Sloderdijk quer propor o tema da superioridade do modelo "oriental" de capitalismo em comparação ao renano ou anglo-saxão. Não só porque aChina, Cingapura, Índia têm taxas de crescimento muito superiores, mas também porque são países que elaboraram sistemas políticos "originais", isto é, capazes de remover esse obstáculo – a democracia – que impede o capitalismo de continuar se desenvolvendo. Mas outro aspecto interessante é que muitos países ocidentais começaram a reproduzir, e portanto a adaptar, esse modelo social e político. O sarcasmo sobre o berlusconismo ou sobre a direita norte-americana certamente não se deve à conclamada falta de estatura política de Silvio Berlusconi ou de George W. Bush, mas sim ao fato de que eles não podiam e não podem liquidar tão facilmente a democracia parlamentar. Não por acaso Sloderdijk convida a olhar com atenção para o que está acontecendo na Rússia de Putin.

Essa é provocação, geralmente acolhida pelos outros relatores no seminário reproduzido pelo livro. Mas cada intervenção adiciona elementos que merecem atenção. Por exemplo, quando são indicados nos financistas os monges da religião capitalista, que não mais convida à parcimônia, como faziam os calvinistas, mas sim ao gozo. Mas os financistas não são homens e mulheres hedonistas. A seu modo, só convidam seguir preceitos, regras que podem garantir a harmonia e a superação do estado de necessidade em que todos estamos condenados a viver. Os comerciantes, os financistas e o consumo são, portanto, monges e regras de vida que permitem não a felicidade, mas sim a possibilidade de viver em harmonia. O capitalismo, portanto, se "culturalizou", porque, quando vende mercadorias, na realidade, está propondo estilos de vida, modelos de relações sociais, enquanto o andamento da bolsa de valores é o barômetro das condições existenciais dos indivíduos. Enfim, a economia da marca, juntamente com o poder performativo das finanças, são os elementos constitutivos do capitalismo como religião.

As teses apresentadas no livro deveriam ser contextualizadas à situação atual, onde há pouco espaço, pelo menos na Europa e nos Estados Unidos, para a harmonia. Mas não há dúvida de que o nexo entre democracia e capitalismo é cada vez mais tênue, assim como é evidente que as finanças continuam desempenhando o papel de governo não só da economia, mas também da vida social.

E causa graça ouvir comentadores da vida política italiana – mas acontece o mesmo naFrança, Alemanha e Reino Unido – dizerem que um liberal é algo diferente de um liberista. No capitalismo divino, os clérigos das finanças falam o mesmo idioma. Podem mudar os sotaques, mas entre Mario Monti e Jean-Claude Trichet não há muita diferença. Ambos são guardiões do "capitalismo como religião" e têm uma concepção da democracia que fariaAdam Smith corar.

Fonte: Blog do Nassif.

sábado, 19 de novembro de 2011

ZIZEK E O OCCUPY WALL STREET

A tinta vermelha: discurso de Slavoj Žižek aos manifestantes do movimento Occupy Wall Street

Posted on 11/10/2011 by boitempoeditorial| 152 comentários

Slavoj Žižek visitou a Liberty Plaza, em Nova Iorque, para falar ao acampamento de manifestantes do movimento Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street), que vem protestando contra a crise financeira e o poder econômico norte-americano desde o início de setembro deste ano.

O filósofo nos enviou a íntegra de seu discurso para publicarmos em nosso Blog, que segue abaixo em tradução de Rogério Bettoni. Caso deseje ler a versão original em inglês, está disponível no site da Verso Books (assim como outros comentários de filósofos e cientistas sociais sobre o movimento Occupy Wall Street).

***

Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido, não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização social pode substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem.

Então não culpe o povo e suas atitudes: o problema não é a corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos incita a sermos corruptos. A solução não é o lema “Main Street, not Wall Street”, mas sim mudar o sistema em que a Main Street não funciona sem o Wall Street. Tenham cuidado não só com os inimigos, mas também com falsos amigos que fingem nos apoiar e já fazem de tudo para diluir nosso protesto. Da mesma maneira que compramos café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, eles tentarão transformar isto aqui em um protesto moral inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos é o fato de já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para a caridade ou comprar um cappuccino da Starbucks que tem 1% da renda revertida para problemas do Terceiro Mundo é o suficiente para nos fazer sentir bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos encontros, é que percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nossos engajamentos políticos sejam terceirizados – mas agora nós os queremos de volta.

Dirão que somos “não americanos”. Mas quando fundamentalistas conservadores nos disserem que os Estados Unidos são uma nação cristã, lembrem-se do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos.

Dirão que somos violentos, que nossa linguagem é violenta, referindo-se à ocupação e assim por diante. Sim, somos violentos, mas somente no mesmo sentido em que Mahatma Gandhi foi violento. Somos violentos porque queremos dar um basta no modo como as coisas andam – mas o que significa essa violência puramente simbólica quando comparada à violência necessária para sustentar o funcionamento constante do sistema capitalista global?

Seremos chamados de perdedores – mas os verdadeiros perdedores não estariam lá em Wall Street, os que se safaram com a ajuda de centenas de bilhões do nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas nos Estados Unidos já existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que vocês não respeitam a propriedade privada, mas as especulações de Wall Street que levaram à queda de 2008 foram mais responsáveis pela extinção de propriedades privadas obtidas a duras penas do que se estivéssemos destruindo-as agora, dia e noite – pense nas centenas de casas hipotecadas…

Nós não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que merecidamente entrou em colapso em 1990 – e lembrem-se de que os comunistas que ainda detêm o poder atualmente governam o mais implacável dos capitalismos (na China). O sucesso do capitalismo chinês liderado pelo comunismo é um sinal abominável de que o casamento entre o capitalismo e a democracia está próximo do divórcio. Nós somos comunistas em um sentido apenas: nós nos importamos com os bens comuns – os da natureza, do conhecimento – que estão ameaçados pelo sistema.

Eles dirão que vocês estão sonhando, mas os verdadeiros sonhadores são os que pensam que as coisas podem continuar sendo o que são por um tempo indefinido, assim como ocorre com as mudanças cosméticas. Nós não estamos sonhando; nós acordamos de um sonho que está se transformando em pesadelo. Não estamos destruindo nada; somos apenas testemunhas de como o sistema está gradualmente destruindo a si próprio. Todos nós conhecemos a cena clássica dos desenhos animados: o gato chega à beira do precipício e continua caminhando, ignorando o fato de que não há chão sob suas patas; ele só começa a cair quando olha para baixo e vê o abismo. O que estamos fazendo é simplesmente levar os que estão no poder a olhar para baixo…

Então, a mudança é realmente possível? Hoje, o possível e o impossível são dispostos de maneira estranha. Nos domínios da liberdade pessoal e da tecnologia científica, o impossível está se tornando cada vez mais possível (ou pelo menos é o que nos dizem): “nada é impossível”, podemos ter sexo em suas mais perversas variações; arquivos inteiros de músicas, filmes e seriados de TV estão disponíveis para download; a viagem espacial está à venda para quem tiver dinheiro; podemos melhorar nossas habilidades físicas e psíquicas por meio de intervenções no genoma, e até mesmo realizar o sonho tecnognóstico de atingir a imortalidade transformando nossa identidade em um programa de computador. Por outro lado, no domínio das relações econômicas e sociais, somos bombardeados o tempo todo por um discurso do “você não pode” se envolver em atos políticos coletivos (que necessariamente terminam no terror totalitário), ou aderir ao antigo Estado de bem-estar social (ele nos transforma em não competitivos e leva à crise econômica), ou se isolar do mercado global etc. Quando medidas de austeridade são impostas, dizem-nos repetidas vezes que se trata apenas do que tem de ser feito. Quem sabe não chegou a hora de inverter as coordenadas do que é possível e impossível? Quem sabe não podemos ter mais solidariedade e assistência médica, já que não somos imortais?

Em meados de abril de 2011, a mídia revelou que o governo chinês havia proibido a exibição, em cinemas e na TV, de filmes que falassem de viagens no tempo e histórias paralelas, argumentando que elas trazem frivolidade para questões históricas sérias – até mesmo a fuga fictícia para uma realidade alternativa é considerada perigosa demais. Nós, do mundo Ocidental liberal, não precisamos de uma proibição tão explícita: a ideologia exerce poder material suficiente para evitar que narrativas históricas alternativas sejam interpretadas com o mínimo de seriedade. Para nós é fácil imaginar o fim do mundo – vide os inúmeros filmes apocalípticos –, mas não o fim do capitalismo.

Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as suas correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os amigos: “Vamos combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa”. Depois de um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita em azul: “Tudo é uma maravilha por aqui: os estoques estão cheios, a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance – a única coisa que não temos é tinta vermelha.” E essa situação, não é a mesma que vivemos até hoje? Temos toda a liberdade que desejamos – a única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos livres” porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos” etc. etc. – são termos FALSOS que mistificam nossa percepção da situação em vez de permitir que pensemos nela. Você, que está aqui presente, está dando a todos nós tinta vermelha.

Fonte: Blog da Boitempo.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

RUÍDOS NO CINEMA

Terça, 12 de julho de 2011, 08h13

A necessidade dos ruídos

André Setaro
De Salvador (BA)

Quando do advento do cinema falado, em fins dos anos 20, a verborragia tomou conta dos filmes e se destruiu por completo a estética da arte muda. A linguagem cinematográfica alcançara uma perfeição quase absoluta, mas pedia o som. Este veio de forma desordenada e os filmes perderam, por assim dizer, a sua arte, para se transformarem em avalanches de diálogos. Foi preciso esperar a década de 30 para que houvesse uma compreensão da exata estrutura audiovisual do cinema e, então, alguns cineastas conseguiram dosar a imagem e o som, que entraram em conjugação harmônica. O surgimento do cinema falado também veio a estabelecer uma série de problemas, como bem mostra, de maneira satírica, aquele que é considerado o maior musical de todos os tempos: Cantando na chuva (Singin'in the rain, 1952), de Stanley Donen e Gene Kelly.

Há, na parte sonora, três bandas: a banda dos diálogos, a banda da partitura musical, e a banda dos ruídos. Esta última, por incrível que pareça, ainda se encontra pouco utilizada como elemento estético. Um filme argentino, extraordinário, O pântano, de Lucrecia Martel, é um exemplo perfeito da sábia utilização dos ruídos. Martel esteve ano passado no Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual e falou sobre a estética dos ruídos.

Lars von Trier, cineasta dinamarquês, soube usar o ruído com propriedade nas cenas da floresta em O anticristo, assim como a própria Martel os utiliza com eficiência estética e dramática em O pântano (os ruídos das cadeiras no pátio onde se encontra uma piscina, os raios etc). Os fratelli Coen sabem usá-los em seus filmes, notadamente no oscarizado Onde os fracos não têm vez.

Foi apresentado no Cannes Classic, evento do festival do mesmo nome, a cópia remasterizada de Psicose, causando, ainda hoje, 50 anos depois, um grande impacto na platéia, principalmente por causa da partitura impactual de Bernard Herrmann que, na remasterização do filme consegue ser ouvida em todos os seus detalhes. Aliás, a narrativa para Psycho é executada, hoje, em concertos da maior expressão no cenário internacional. O grande Herrmann, que assinou as trilhas dos principais momentos hitchcockianos, morreu em 1975, após compor a partitura de Taxi Driver, de Martin Scorsese, na qual, pela primeira vez, se utiliza de instrumentos eletrônicos.

Nunca se pode deixar de esquecer e verificar que o cinema é uma estrutura audiovisual. Mas as pessoas insistem em dar valor a um filme por causa do seu elo semântico, isto é, o conteúdo, a mensagem. O que é um erro, pois o valor cinematográfico de um filme se encontra na sua linguagem, na maneira de o cineasta a articular por meio dos planos, dos movimentos de câmera, da angulação, da montagem etc.

O advento do som provocou uma reviravolta completa na já estabelecida estética da arte muda que alguns realizadores, a exemplo de Charles Chaplin, se recusaram a aderir ao cinema falado. Chaplin realizou Luzes das cidades (City lights, 1930), quando o som já era moeda corrente nas salas exibidoras. E ficou agarrado a uma estrutura narrativa da era muda em 1936 em Tempos modernos, e somente veio a falar em 1941 quando fez um discurso bombástico em O grande ditador (embora neste filme a estrutura narrativa continuasse a ser do cinema mudo).

Mas muita água rolou debaixo da ponte em 116 anos de cinema, arte jovem, como se pode ver, se comparada às outras. Lucrecia Martel fez O pântano com a consciência de uma cineasta ciente das possibilidades estéticas do cinema contemporâneo. Argentina, é considerada pelos críticos, uma das diretoras mais originais da atualidade. Basta dizer que A menina santa, de sua autoria, é um dos filmes preferidos de Pedro Almodóvar.

Em Os brutos também amam (Shane, 1953), de George Stevens, quando Paredão (Elisha Cook Jr), tirando onda de valentão, tenta, no lamaçal diante da taberna onde se encontra o temível pistoleiro Wilson (Jack Palance), dizer-lhe algumas poucas e boas, Wilson, com seu olhar frio, fita o pobre Paredão enquanto coloca, maneirosamente, as suas luvas pretas (sinal que vai sacar da arma). O tiro que Wilson dispara tem um ruído tão intenso, que causa grande impacto. George Stevens, numa entrevista antológica a Paulo Perdigão publicada na revista Filme/Cultura, disse ao crítico carioca que o som do tiro foi, na verdade, o som de um tiro de canhão. Há, por outro lado, ruídos que servem como sinal de pontuação, como a mala que cai no final de Frenesi, de Alfred Hitchcock para sinalizar, com impacto e mise-en-scène, o término do filme.

E a palavra como elemento estético, um fim em si mesma, aconteceu com o extraordinário, e imprescindível, Hiroshima, mon amour (1959), de Alain Resnais, que provocou, na época, comoção diante de sua originalidade. Originalidade que seria reforçada dois anos depois pelo próprio Resnais em O ano passado em Marienbad. E, impressionante, este realizador, com quase 90 anos de idade, continua em atividade, tendo nos brindado, ano retrasado, com um filme que foi, de longe, o melhor, As ervas daninhas (Les herbes folles). Outro longevo é o português Manoel de Oliveira, que já passou dos 100 e continua filmando.

André Setaro é crítico de cinema e professor de comunicação da Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Fonte: Portal Terra.