CRÍTICA LITERÁRIA
A ficção que sente vergonha
Por José
Castello em 22/05/2012 na edição 695
Reproduzido do suplemento “Eu
& Fim de Semana” do Valor Econômico, 18/5/2012; intertítulos do OI
Os
críticos literários não suportam a ideia de que a crítica literária é, ela
também, um tipo (ainda que envergonhado) de ficção. A hipótese os horroriza,
pois desmorona a torre de conceitos e preconceitos desde a qual eles observam,
com a postura de metódicos cientistas, a produção literária. Afasta-os das
garantias de verdade que eles supõem inerentes ao trabalho crítico. Esfacela
suas armaduras e os expõe.
A crítica
trabalha, ela também, com a ilusão de verdade. Arcabouços teóricos, tradições
analíticas, protocolos de leitura, nenhuma dessas couraças garante, contudo, a
presença da verdade. Todo crítico é, antes de tudo, um leitor comum. Por mais
que lute contra isso, nenhum crítico consegue calar o leitor comum que traz
dentro de si. Uma grande diversidade de aspectos subjetivos entra, sempre, em
jogo em sua atividade. A crítica – mesmo a mais “pura” delas – está impregnada
de memória, de superstições mentais, de devaneios e imaginação. Também ela
deriva da fantasia e, em consequência, se aproxima (“é”) da ficção.
Juan José
Saer, o grande escritor argentino, observou certa vez que a ilusão da
não-ficção se tornou, em nossos tempos, o gênero da moda. O rechaço da ficção
seria, nesse caso, uma garantia de verdade. Vivemos no século da ciência e da
tecnologia – logo, no século da verdade. Mas será? Como desprezar a ficção se
somos sujeitos de sonho e de fantasia? Se estamos, desde a mais remota
infância, aprisionados às lendas íntimas da imaginação? Se, apesar de nossos
esforços sinceros, continuamos prisioneiros de nossa subjetividade – que é
sempre limitada, nublada e parcial? “A superioridade da verdade sobre a ficção
é apenas uma fantasia moral”, escreveu Saer. A ficção não descarta a verdade
objetiva, apenas enfatiza sua turbulência e complexidade. A ficção não mata a
verdade, em vez disso, a expande.
Todo
crítico é uma vítima do que lê
A razão
crítica surge amarrada, ela também, à ficção. Recordo aqui um pensamento do
escritor húngaro Imre Kertész: “Quanto mais argumentos apoiam a minha razão,
tanto mais longe fico da verdade, porque participo de um jogo de linguagem
cujos componentes são todos falsos, me encontro num sistema de ideias que
deturpa tudo.” Kertész conhece, muito bem, os aspectos utilitários da noção de
verdade. Diz mais: “Se esse sistema de ideias cria uma realidade, a minha
realidade dentro dele só pode ser uma realidade instrumental.” Na leitura de
uma ficção, uma grande parte da verdade nos escapa. O mais dramático: ela
escapa, da mesma maneira, a seu autor. Essas zonas de sombra são, a rigor, o
que chamamos de ficção. Só temos acesso ao indizível através do recurso da
fantasia.
A
crítica, porém, parte do pressuposto de que o autor é senhor de seu texto.
Acredita, ainda, que, feito de segredos, jogos e armadilhas, o texto – como em
uma escavação arqueológica –, se oferece à sua decifração. Mas é o contrário!
Quando lê um livro, um crítico – como qualquer leitor comum – é, mais, objeto
da interpretação do que sujeito da interpretação. É como no consultório do
psicanalista. Supomos, em geral, que, durante a leitura, o livro se deita no
divã (e se oferece para interpretação e decifração do leitor), enquanto o
leitor se acomoda na cadeira do analista. Ocorre, porém, o contrário. Quem
ocupa a cadeira do psicanalista – quem lê, interpreta e provoca – é o livro.
Quem se deita no divã e “sofre” do que lê é o leitor.
Parte
majoritária da crítica se aferra a um modelo clássico, que vê a literatura,
apenas, como um objeto de estudos. Enquanto isso, ela esconde e renega os
impactos que a leitura provoca no espírito de quem lê, afetando assim,
diretamente, a leitura que será capaz de fazer. Os críticos desprezam o modo
como a literatura os atinge, os desloca e os transtorna. Mas todo crítico, mais
que o algoz, é uma vítima do que lê.
A ficção
deixa feridas no leitor
Diante de
um livro, o crítico deveria seguir a sabia lição formulada por Ernesto Sabato:
“Se ele se glorifica, eu o rebaixo; se ele se rebaixa, eu o glorifico; e o
contradigo sempre, até que ele compreenda que é um monstro incompreensível.”
Contudo, admitir que a leitura é uma atividade inesgotável e impossível é, ao
mesmo tempo, admitir que ela o atinge e o atravessa. Um dia, como o Gregor
Samsa, de Franz Kafka, o leitor acorda transformado no que não é- ou, pelo
menos, no que costumava ser. Eis o efeito da leitura: atravessar o peito de
quem lê, seja o leitor autorizado, seja o leitor comum. A mesma faca que fere é
a faca que cura. Cada um faz com ela o que pode.
Quando
tinha 19 anos, adoeci depois de ler, pela primeira vez, A Paixão Segundo G.
H., de Clarice Lispector. Chamado por minha avó, um médico de cabelos
brancos diagnosticou: “A senhora não se preocupe, é só uma paixonite.” Foi a
primeira grande crítica literária que ouvi – proferida não por um literato, mas
por um clínico geral. Ele soube entender que eu sofria de uma paixão. Que um
livro me derrubara. E que só a digestão do próprio livro me curaria. Tanto que
prescreveu apenas tempo e paciência. De fato, com o passar dos dias voltei a
mim. Mas, então, eu já era um outro: a leitura de G. H., para o melhor e
para o pior, me transformou. Eu era Gregor Samsa, agora incapaz de ler a mim
mesmo.
Volto a
Saer, para quem a ficção não é uma negação da realidade, mas uma conexão
extrema entre a realidade e a imaginação. A mesma conexão fundamenta o trabalho
da crítica. A realidade – as convenções, as tradições, as normas – se expressa
no arcabouço teórico que o crítico manipula. Mas nenhum crítico, nem o mais
austero, “sai de si” quando se critica um livro. Ao contrário: a leitura o
lança para dentro de si mesmo. O livro, como “uma faca só lâmina” – para pensar
em João Cabral – o atinge e fere. Toda ficção, de alguma forma, nos adoece,
isto é, faz nosso corpo sangrar. Diz Saer: “A ficção não põe em dúvida a
verdade, ao contrário, ela realça seu caráter complexo.” A ficção deixa
profundas feridas no leitor – mesmo no mais bem equipado deles.
A ficção
afeta a maneira de ler
Dizia
Clarice Lispector que a ficção não é feita de respostas, mas de perguntas.
Quando lemos um livro, essas perguntas se multiplicam e nos ferem. Por mais que
lutemos, não conseguimos respondê-las – tanto que lemos, quase sempre, em
silêncio. As respostas que esboçamos se transformam em novas perguntas. A
grande ficção, em vez de nos apaziguar, nos atordoa. Que outra coisa é o trabalho
crítico senão a arte de formular novas perguntas a partir das perguntas
primeiras propostas pela ficção? A matéria da literatura não é a verdade, mas
algo que a ultrapassa: o enigma. Um enigma não pode ser decifrado, pode apenas
ser rondado. Todo crítico, mesmo o mais austero deles, dança em torno de seu
enigma. Essa dança é a crítica. Imersa na fantasia e na invenção, a crítica
literária não passa, no fim das contas, de um desdobramento da ficção.
Ainda que
não escreva na primeira pessoa; ainda que não diga uma só palavra a seu próprio
respeito; ainda que lute para se conservar objetivo e imparcial, o crítico será
sempre um prisioneiro da ficção que tem diante de si. Ela o transpassa, o
deforma e reelabora seus pensamentos. Ela o afeta e altera sua maneira de ler.
Mesmo a mais ortodoxa crítica literária é, sim, uma forma – ainda que discreta
e envergonhada – de ficção.
***
[José
Castello é jornalista e escritor, colunista do suplemento “Prosa & Verso”,
de O Globo, e autor de Vinicius de Moraes: O Poeta da Paixão
(Companhia das Letras), Inventário das Sombras (Record) e Ribamar
(Bertrand Brasil), dentre outros]
Fonte: Observatório da Imprensa.
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