18:26,
18/08/2012
Paulo
Moreira Leite
Quando
o WikiLeaks ofereceu 500 000 documentos secretos da diplomacia americana,
Julian Assange tornou-se uma celebridade mundial. Foi cortejado pelos jornais,
revistas, emissoras de TV, que divulgavam avidamente as informações que ele
havia obtido. Falou-se no surgimento de um novo jornalismo e o próprio Assange
foi apresentado como seu profeta.
Com o
passar dos anos, o tratamento mudou. O tratamento a Assange adquiriu um tom
essencialmente negativo. Oscila entre a futilidade mais rasteira do jornalismo
de celebridade – como lembrar que sua mãe era hippie, que ele teve 37
endereços diferentes até os 16 anos, que seu padrasto era violento – até a
crítica a seus métodos de gestão. Ele é acusado de narcisismo e de
esconder talentos que ajudaram o WikiLeaks a fazer sucesso. Sem ficar
envergonhado, um jornalista escreveu que Assange esconde as fontes de seu
trabalho. Quer dizer que o tal sigilo das fontes não vale para o WikiLeaks?
Já ouvi
relatos de que é temperamental demais, arrogante e assim por diante.
Em breve,
leremos algum espertinho dando lições de auto-ajuda para o rapaz.
Este
tratamento, que chega a lembrar um obituário precoce, cumpre uma função :
esconder que Assange é, hoje, um perseguido político.
Não é
preciso simpatizar com a visão vagamente anarquista de suas ideias para juntar
alguns neurônios. Num ato que envergonha as frequentes proclamações
democráticas do governo americano, o soldado Bradley Manning, que foi,
supostamente, responsável pelo vazamento dos 500 000 documentos,
encontra-se preso, incomunicável, sem julgamento, há dois anos e meio. O
governo sueco alega que gostaria de levar Assange para Estocolmo para que
seja julgado pela acusação de crimes sexuais mas não oferece garantias de
que não será extraditado para os EUA. O próprio governo norte-americano faz
silêncio sobre o assunto. Não é difícil imaginar a razão.
Essa
postura me deixa envergonhado. Assange não se tornou pior nem
melhor depois que divulgou os 500 000 documentos. Seus métodos de gestão não se
revelaram mais questionáveis em função disso. A mudança é de natureza política.
Ele
passou a ser tratado como inimigo pelo governo dos Estados Unidos – e o
tratamento que recebe de outros governos, de grandes corporações com interesses
em Washington, é apenas um reflexo disso. Jornais e jornalistas que assumem
essa postura apenas atuam como porta-vozes dessa pressão. Confesso que essa
reação não é tão surpreendente.
Só não
era possível adivinhar que fosse tão completa e automática.
No caso
brasileiro, o esforço para ignorar a importância de Assange tem um aspecto
especialmente bocó. Estamos em luta há pelo menos três décadas pela
abertura de arquivos do regime militar, capazes de esclarecer aspectos
relevantes de nossa história. Esses segredos, que insultam nossa memória e
nossa cidadania, deveriam ajudar a entender a importância dos documentos que
Assange revelou.
Não custa
recordar, também, que boa parte da história política do país – antes, durante e
depois da ditadura permanece em segredo nos EUA – por decisão do governo
norte-americano, que não tem interesse que se conheça a verdade.
E aqui
chegamos ao centro da questão.
O gesto
de Assange foi uma transgressão de regras e costumes. Nós sabemos que o governo
norte-americano divulga periodicamente seus documentos oficiais. Mas o acesso
não é liberado inteiramente, como muitas pessoas acreditam. Isso se faz de
acordo com regras rígidas e controles severos. Os prazos de divulgação
autorizada são longos e nem sempre são cumpridos. Os serviços secretos podem
vetar a divulgação de um texto sempre que consideram que isso pode ser inconveniente
para os interesses do país. Imagine como seria importante conhecer, por
exemplo, os arquivos da CIA, com seus agentes e informantes das últimas
décadas?
Não seria
útil esclarecer – por exemplo – o papel de oficiais americanos no treinamento das
técnicas de tortura?
Assange
quebrou isso. Atravessou controles burocráticos e acertos políticos que
envolvem a divulgação de informações realmente sensíveis, para expor segredos e
verdades sem hora marcada. Num mundo onde as grandes notícias exclusivas, os
grandes furos, sempre atendem a um interesse que permanece oculto e bem
protegido, Assange abriu os arquivos e colocou no ar — doa a quem doer. É
respeitável pelo que fez e também pelo exemplo que deixou. É perseguido pelas
mesmas razões.
E é por
isso que tentarão puní-lo de forma exemplar. Neste jogo, vale tudo. Inclusive
empurrar Assange para os braços do inimigo e depois acusa-lo de ter-se aliado
aos adversários. A tese, agora, é dizer que se tornou aliado de Rafael
Correa, o presidente do Equador que é aliado de Hugo Chávez. Seria condenável
porque afinal, Correa é acusado de pressionar a imprensa de seu país.
Queriam o
quê? Uma aliança com Obama, que mandou cortar o acesso do Wikileaks a seus
financiamentos? Com o primeiro ministro inglês David Cameron, com muitos amigos
no império de Rupert Murdoch e seu jornalismo sujo?
Fonte: site da revista época.
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