O mundo assombrado pelos
demônios
Por
Ulisses Capozzoli em 11/12/2012 na edição 724
O temor
provocado por um alardeado fim do mundo, no próximo dia 21 de dezembro
(solstício de verão no hemisfério sul), talvez seja a evidência mais clara da impotência
da ciência em sensibilizar a sociedade humana para um olhar além da miséria
filosófica e do sofrimento dispensável. Ao menos para parcelas significativas
da população mundial.
Na
verdade, não se trata da impotência apenas da ciência, mas também do
jornalismo, enquanto possibilidade (de participar) da construção de uma
cidadania contemporânea, no sentido da convivência crítica com fatos que vão de
navegações que extrapolam o Sistema Solar, passando por paradoxos na mecânica
quântica (emaranhamento quântico e relatividade restrita, por exemplo) e
conquistas surpreendentes na genética, entre outros campos do conhecimento.
Ao que
tudo indica, estamos vivenciando uma experiência de retorno de conteúdos
arcaicos, típicos da era pré-científica, quando os demônios tinham o inteiro
controle da situação e, de tempos em tempos, castigavam os humanos com relatos
e previsões os mais horrendos em que se podia pensar.
Porque
isso está ocorrendo agora, mais uma vez, é um fato que procede da complexa
dinâmica da máquina do mundo. De imediato, no entanto, pode-se dizer que, até
às vésperas da publicação da gravitação universal por Isaac Newton (1686), a
igreja católica obtinha ganhos com essa mesma atuação terrorista.
Antes de
Newton, com frequência, quando aparecia um cometa no céu, os padres badalavam
os sinos de suas paróquias e trombeteavam o “fim do mundo”. Os homens ricos,
com a consciência pesada pela maneira como haviam acumulado suas fortunas,
corriam então às igrejas e faziam suas doações, como forma de aplacar os
pecados e assim livrar-se das chamas eternas que crepitavam no inferno,
renovadas pelo ardor da Inquisição. O mundo estava para acabar, mas, ainda
assim, as ofertas eram aceitas. Os pobres, como os ricos, também gemiam seus
pavores entre os (poucos) dentes, mas, açoitados a cada dia pela miséria, quase
mais nada tinham a perder.
Pela
altura em que Newton publicou sua gravitação universal, um estilo literário, as
“narrativas fantásticas” corriam o mundo. Eram o espelho da mentalidade da
época. Nesses registros estava incluído o conceito de um mundo em forma de
bacia, de que navegantes mais ousados − aventurando-se no que os portugueses
chamaram de “mar-oceano” − podiam cair, precipitando-se no caos e na
degeneração.
Nesses
relatos era comum a descrição de criaturas com corpos humanos e cabeça de
animais, como cães, touros e serpentes. As descrições geográficas das terras
que abrigavam esses seres eram as mais exóticas e inconsistentes, mas, ainda
assim, tomadas como um contínuo da realidade.
Foram os
portugueses os primeiros a refutar esse obscurantismo febril que marcou a longa
noite da Idade Média, a partir do século 4, com o apagamento da cultura
greco-romana, até um conjunto de datas irregulares espalhadas pelo Ocidente.
Pedro Nunes (1502-1578), D. João de Castro (1500?-1548) e Garcia de Orta
(1501-1568) foram alguns dos responsáveis por essa glória portuguesa, sem
reconhecimento difundido além de Portugal, e praticamente ignorada no Brasil.
Frequência
dos cometas
Em
relação aos cometas, desde sempre astros de mau agouro, no passado eram mais
frequentes no céu. Não por um fenômeno de natureza cosmológica, mas porque as
noites ainda não eram ofuscadas pela poluição luminosa, abastecida pela energia
elétrica. As populações eram majoritariamente rurais. E o céu era o relógio
natural que regulava o ritmo da vida.
Com a
publicação da gravitação universal, até recentemente acreditávamos que Isaac
Newton − além de explicar a queda da maçã, a órbita da Lua e do sistema
Terra-Lua em torno do Sol − também havia dado um chute definitivo no traseiro
dos demônios, abrindo o espaço mental humano para a beleza e a ordem da
ciência.
Agora, o
retorno da ideia do fim do mundo, com suposta base em um antigo calendário
maia, recheado por um conjunto de absurdos e despropósitos, sugere que as
coisas, lamentavelmente, não ocorreram assim.
Neste
momento, relatos procedentes de diversas regiões do mundo mostram temor e medo
que não combinam em nada com o pretenso cientificismo do século 21, marcado por
um fluxo de informação praticamente em tempo real, e inédito na história da
civilização.
Ao longo
da Idade Média, para se ter uma ideia da contraposição, mesmo os correios,
criados no Egito três mil anos antes, cessaram seu funcionamento e a
correspondência foi um luxo restrito às casas reais e ordens religiosas.
Mas
talvez sejam exatamente a velocidade e profundidade com que as mudanças
ocorreram nesse momento da história as responsáveis pelo retorno de conteúdos
arcaicos como o que prega, mais uma vez, o fim do mundo. Um substrato mental
mágico, que prescinde da racionalidade e compensa, patológica e
desalentadoramente, um mundo em profundo desequilíbrio.
O que era
não é mais e o que será ainda não é. Saltamos de uma das margens do abismo em
direção a outra e, nessa fração do tempo, temos apenas o grande vazio sob os
pés.
Os
postulantes do fim do mundo, alimentados pelo caldo de cultura do obscurantismo
religioso, que se multiplica como cogumelo, articularam uma lógica pueril para
justificar a previsão que fazem. Incluem do buraco negro no centro da galáxia a
explosões solares as razões que justificariam o falso desastre que anunciam.
Falsos
sinais do fim
O buraco
negro do centro da Galáxia, no entanto (a maioria das galáxias deve ter um
buraco negro em seu núcleo), segundo trabalhos científicos recentes, pode
modular a taxa de nascimento de estrelas na Via Láctea e, assim, ter
estabelecido relações ainda não evidentes com a presença da vida na Terra.
Quanto às
explosões solares, de fato estamos num pico de intensidade dessas manifestações.
Mas elas são absolutamente normais e ocorrem há bilhões de anos, provocadas,
possivelmente, pela atuação de linhas magnéticas que atravessam o corpo do Sol
e, ao longo de certo tempo, se distendem como molas gigantes, antes de romper e
então liberar a energia gerada no coração da estrela.
Pastores,
e outros profetas do caos, frequentemente referem-se a explosões solares,
tremores de terra e vulcanismo como sinais dos céus de que os homens não se
comportam bem e assim provocam a ira das divindades.
Sismos e
vulcanismos, no entanto, são evidências de que a Terra está geologicamente viva
e por isso mesmo gera um escudo magnético no espaço que a protege do vento
solar, partículas atômicas desestruturadas que inundam o Sistema Solar após uma
grande explosão.
Não fosse
o escudo magnético de um planeta geologicamente vivo, o vento solar teria
arrancado a atmosfera da Terra e, em consequência disso, não estaríamos aqui.
O retorno
de conteúdos arcaicos relacionados ao propalado fim do mundo certamente não é obra
do acaso, mas o desdobramento de obscurantismos que têm se mostrado evidentes
num fundamentalismo religioso igualmente atrasado e aprisionador da
inteligência e criatividade humanas.
Darwin é
um embuste, os animais nasceram prontos, não houve e nem há qualquer evolução.
Deus criou o Universo em uma semana e com isso toda a história está contada.
A versão
mais recente do obscurantismo religioso veio do Sul escravista dos Estados
Unidos, insufladora de conflitos como a sanguinária guerra do Iraque.
Há, até
agora, no alardeamento do fim do mundo, a ausência de um cometa, o astro
símbolo do terror medieval, para completar o quadro mórbido do convencimento. E
isso só não ocorreu por muito pouco.
Foi só em
fins de setembro último que uma dupla de astrônomos amadores russos descobriu
um cometa rumando para o Sol e que pode vir a ser um dos mais brilhantes de
todos os tempos.
O
C/2012S1, ou ISON, terá máxima aproximação da Terra em 28 de novembro de 2013 e
poderá (cometas são astros imprevisíveis, pelo fato de ainda conhecermos
relativamente pouco sobre eles) ser visto a olho nu mesmo durante o dia.
No
sábado, 22 de dezembro, como ao longo das infinitas manhãs da Terra, quando
mais uma vez o Sol elevar-se como um rubra moeda incandescente no horizonte
leste, aqueles que temeram algo tão tolo e imbecil quanto a ideia de um
iminente fim do mundo talvez se ruborizem de constrangimento.
Mas em
pouco tempo a história cairá no esquecimento, como acontece com praticamente
todas as histórias. Mesmo o esquecimento, no entanto, não apagará para homens
mais lúcidos do futuro que, um dia, já na segunda década do século 21, boa
parte da humanidade temeu pela sobrevivência da Terra por obra de um discutível
calendário maia e a esperteza doentia de um grupo de farsantes em escala global.
Ainda
que, antes disso, o astrônomo e divulgador da ciência Carl Sagan, na sua obra
mais pessimista e que dá título a este artigo, tenha prevenido para essa
possibilidade de limitação da ciência.
***
[Ulisses
Capozzoli é jornalista, editor-chefe Scientific American Brasil]
Fonte: Observatório da Imprensa.
Um comentário:
Me espanta o quanto a imprensa tem culpa nesse cenário. Se ela o quisesse tais crendices não mais existiriam!
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