domingo, 9 de abril de 2017

O CONTO

O CONTO
Em nossa língua portuguesa o conto designa a forma ficcional curta. É uma história com enredo, personagens, cenas, etc. O conto pode ter uma tensão interna com um final chocante (como em Poe) ou pode ser um relato ficcional representando o cotidiano da vida sem necessariamente possuir essa tensão interna (como em Tchekhov).
Na maior parte das vezes o conto utiliza-se de poucos personagens em poucas cenas e as descrições não costumam ser muito longas. Mas é evidente que isso não é um conjunto de regras absolutas e definitivas. O que importa é que o conto possua um narrador, personagens e uma história a ser contada. O narrador pode ser um eu-protagonista, um eu-testemunha, um autor-editor, um reprodutor de uma história conhecida ou simplesmente uma voz que tudo conhece e tudo narra na história que está sendo contada.
Os temas são variados e a escolha deles dependerá da sensibilidade do escritor. O conto possui uma estrutura que Cortázar definiu como “esfericidade”, ou seja, uma história com uma tensão que possui um início, um desenvolvimento e uma conclusão que resolva essa tensão.
A prática da escrita requer, evidentemente, a prática da leitura. Aprende-se a fazer contos lendo e fazendo contos. Ter bom conhecimento gramatical é essencial, mas não se resume a isso a prática da escrita. Saber criar personagens e criar um enredo instigante é a chave para uma boa história.
O enredo tem que ter um roteiro coerente, mesmo tratando-se de literatura fantástica. Existe uma ideia original que dá o pontapé inicial que merece ser respeitada, mesmo quando o final é surpreendente. Como criador da obra o autor pode fazer modificações nela desde que respeite a coerência da ideia. Reler o conto várias vezes depois de termina-lo permite corrigir eventuais falhas ou reescrever o conto quando necessário.
Mesmo que seja uma história curta não há para o conto um limite para o tempo ou o espaço em que a mesma esteja sendo narrada. Ela pode acontecer em poucas horas ou milhares de anos. O espaço usado pode ser uma pequena sala ou o Universo inteiro. É a imaginação do escritor que fará essas escolhas serem úteis ou não para a história.
Um conto pode ou não fazer uma reflexão moral ou teórica. Isso dependerá das intenções e escolhas do escritor. Tchekhov defendia que um escritor deveria ser discreto em suas opiniões políticas em uma história e Jorge Luis Borges dizia justamente o contrário. Se você quiser seguir o conselho de Borges sinta-se à vontade, apenas tome cuidado para não criar uma obra panfletária ridícula.
De onde virão as ideias para se criar histórias? Como as ideias “não caem do céu” o jeito é você contentar-se com o mundo que nos circunda. A realidade é uma fonte inesgotável de inspiração. Cenas cotidianas, histórias que nos contam, trechos de livros que lemos, filmes que assistimos, acontecimentos pessoais, experimentações práticas, paixão, ódio, medo, humor, tanto faz, o mundo todo em que vivemos é um grande livro cheio de histórias.
Mas você deve estar se perguntando: por que escrever histórias? Escrevemos e lemos história porque elas existem e nos ensinam. É nelas que encontramos as necessidades, os medos, os exemplos de coragem e abnegação, as forças e fraquezas da humanidade. Escrevemos histórias pelo mesmo motivo pelo qual se fazem músicas. Ambas (música e literatura) são formas de arte e existem artistas que fazem opção por uma ou pela outra.
Escrever é uma forma de interpretação do mundo. Uma forma de decodifica-lo, de dialogar com ele, de aprender e ensinar novas e velhas lições. Escrever é uma forma de intervir no mundo usando a mais poderosa das armas: a palavra.

Aristóteles Lima Santana, 09/04/2017.

sábado, 29 de outubro de 2016

A OCUPAÇÃO ESTUDANTIL DO IFBA EM PAULO AFONSO

A OCUPAÇÃO ESTUDANTIL DO IFBA EM PAULO AFONSO
Seguindo a atual onda de ocupações estudantis em protesto contra a PEC 241, os estudantes  do IFBA ocuparam a unidade de Paulo Afonso. No dia dezoito de outubro uma grande assembleia convocada pelo grêmio local reuniu a maior parte dos estudantes e eles aprovaram a ocupação. A decisão da assembleia foi precedida por paralizações anteriores  e debates sobre a educação no país. Entre eles a consciência da necessidade de combater a PEC 241 é alta. A ocupação é acompanhada por debates constantes, palestras e oficinas, o que anula as calúnias dirigidas pela direita nas redes sociais sobre a suposta falta de preparo destes alunos para debater um assunto tão importante. Eles estão, inclusive, debatendo (e recusando) a reforma do ensino médio claramente influenciada pelo movimento direitista “escola sem partido”. Na conversa que tive com os alunos do IFBA deu para perceber como as calúnias dirigidas contra eles subestimam sua capacidade de entendimento e mobilização. Em Paulo Afonso temos uma amostra de como isso acontece no resto do país. Essa onda de ocupações, que tem hoje o Paraná como seu centro mais impactante, já foi precedida por outra em São Paulo. O golpe já foi dado, uma nova direita cresceu, mas o jogo ainda não acabou. Ressurge hoje um novo movimento estudantil de massas.
Apartidário e preocupado com os rumos da educação no país; preocupado com sua formação técnica, mas também com sua formação humanista; antenado com problemas do presente, mas querendo evitar um futuro tenebroso, este talvez seja o melhor retrato do estudante que hoje ocupa escolas em nosso país. Eles estão conscientes de que as reformas propostas por Temer vão na contramão de qualquer projeto de nação desenvolvida.
Contra o movimento de ocupações hoje tem a grande mídia, a militância direitista nas redes sociais e a organização MBL (Movimento Brasil Livre). Grupo de extrema direita que nesta semana entrou em conflito físico com estudantes no Paraná. O MBL  corresponde hoje ao que foi o CCC (Comando de caça aos comunistas) nos anos 60 e o que foi a AIB (Ação integralista brasileira) nos anos 30. Mudou-se a sigla e a época, mas o papel político é o mesmo: o de milícia fascista para combater os movimentos sociais.  Em épocas de confronto social e crise política as milícias fascistas são auxiliares indiretos da repressão do Estado. Podem, inclusive, partir para ações criminosas.
Alguns argumentos medíocres são usados para combater as ocupações. Um deles diz respeito ao direito dos estudantes que não participam das manifestações de poderem estudar. Esquecem que escola não é só formação profissional. A escola reproduz dentro de seus muros as contradições da sociedade. Os conflitos, os preconceitos, os debates intelectuais, técnicos, políticos, etc. Em momentos históricos em que a sociedade ferve em conflitos a escola não fica de fora. Seja puxado por alunos ou professores (ou ambos), a escola acaba se tornando um dos palcos, às vezes o principal, das disputas sociais. A consciência política não é igual em todos os cidadãos e não seria diferente entre os estudantes. Mas as ocupações estão sendo feitas onde existem assembleias em que a maioria dos estudantes estão presentes e aprovam o ato de ocupação. A decisão é democrática e quem é contra é livre para manifestar-se. Não há nada de autoritário nisso, até muito pelo contrário.
Na Bahia , até o presente momento, existem ocupações em Valença, Vitória da Conquista, Eunápolis, Irecê, Ilhéus e Paulo Afonso. Ainda é um movimento em desenvolvimento, mas já é uma luz no meio de tanta subserviência ao golpe. A PEC 241 já foi aprovada na Câmara e o direito de greve dos servidores públicos foi cassado pelo STF. Os golpistas triunfantes estavam seguros de que haveria pouca resistência. Foram pegos de surpresa pelos estudantes.

Aristóteles Lima Santana, 29/10/2016.

terça-feira, 14 de abril de 2015

A NOSSA "AURORA"

A NOSSA “AURORA”
No conto “Aurora sem dia” o nosso Machado de Assis exercita uma crítica deveras irônica àqueles que se julgam sábios mas que desprezam o estudo e a aprendizagem. O personagem principal, Luiz Tinoco, se julga um grande poeta na primeira parte da história, e na segunda julga-se um grande orador da política. Em ambos os projetos ele despreza a leitura tanto dos grandes poetas como dos grandes oradores. Sua desculpa é que ele possui o “dom” para uma e outra. Ele não precisa aprender, pois já sabe. O objetivo de Machado é claro: ao mostrar como o sujeito se dá mal em ambos os projetos ele ridiculariza aqueles que não pesquisam, não se informam e que usam a desculpa do “dom” para ocultar a própria preguiça intelectual.
Se haviam casos deste tipo na época de Machado, em nossos dias eles se tornaram o lugar comum. Gente que acha que pode criar sem precisar passar por um processo de aprendizagem é o que mais se tem por ai. Jovens querem escrever, fazer vídeos, fazer stand up comedy e, o que é pior, intervir em debates sobre temas sérios, sem ler nada sobre tais assuntos ou quaisquer outros. Com a facilidade técnica que temos hoje (acesso à internet, câmeras para filmagem, blogs para escrever, facilidade para divulgar trabalhos, etc.) um grande número de pessoas quer mostrar trabalhos em diversas áreas, mas se recusam a passar pelo necessário processo de aprendizagem. Este processo não inclui apenas a leitura de livros, claro, mas não acontece sem ele.
Em parte a culpa disso pertence ao “culto à técnica”. A técnica no sentido de tecnologia disponível (“domino bem os recursos tecnológicos ao meu dispor, logo, sou bom para trabalhar com arte”). E a criatividade? “Bem, eu tenho o dom e isso é o bastante”. Para estas  pessoas, recordando um velho debate dos anos sessenta, “as ideias caem do céu”, ou “são  inatas da própria mente”.
Um outro fator é a ilusão de que os gênios (de qualquer área) são dotados de um “dom” especial. Para estas pessoas ingênuas Hendrix não passou anos estudando guitarra e nem o próprio Machado de Assis leu vários livros para desenvolver seu intelecto literário criativo. Estes e outros que se destacaram na literatura e em outras formas de arte teriam sua criatividade inata, pronta, sem passar por um processo de desenvolvimento.
A queda nos níveis de leitura só poderia dar nisso. O tempo em que vivemos assiste à expansão da imagem e não é raro alguém argumentar que “não preciso ler livros, já assisto filmes”. É evidente que assistir filmes, palestras, peças teatrais, escutar boa música, etc., tudo isso contribui para a formação cultural do indivíduo. Mas é a leitura que mais mexe com a imaginação. O texto escrito força sua mente a imaginar personagens, possíveis desdobramentos para o texto lido, repulsa, paixão, imaginar finais alternativos, etc. Em um filme é possível ter algumas destas sensações, mas não todas e nem na mesma intensidade de um texto lido. A visualização de cenas e personagens em um filme é imediata, algo já construído. Você é apenas um receptor passivo deles. A leitura desenvolve mais a imaginação criativa, um pressuposto básico para qualquer forma de arte.
Mas não falemos apenas de arte, não nos esqueçamos das opiniões. No admirável mundo novo das redes sociais expandiu-se o terreno propício para dar opiniões sobre qualquer assunto. Com base em quê? Com base em outras opiniões ditas por outras pessoas nas mesmas redes sociais... É evidente que o número excessivo de participantes das redes sociais inclui gente culta e de bom nível de leitura, mas estas pessoas são exceções. As massas estão nas redes sociais. A internet democratizou a participação popular em debates públicos. Algo a se comemorar, mas também para ser visto com cautela, pois as opiniões rasteiras e simplistas em número excessivo esmagam opiniões bem fundamentadas. Como o simplismo é mais fácil de ser apreendido, ele leva uma larga vantagem. Nas redes sociais surgiu o que podemos chamar de “intelectual de facebook”, aquele que repete as informações que lhe interessam com muita convicção e pouco discernimento e avaliação crítica. Nas redes sociais impera a ditadura do chavão: “vai pra cuba”, “você é coxinha”, você é petralha”, “a culpa é do FHC”, “a culpa é do Lula”, etc., a lista seria grande demais. “Para quê ler livros se posso repetir chavões na internet?” Se vivesse nos dias de hoje  Machado de Assis teria material suficiente para escrever outros contos irônicos. A internet seria uma fonte inesgotável para ele.
Voltando ao debate sobre a criatividade artística, podemos afirmar que uma das consequências da falta de pesquisa, leitura e estudo é a expansão do plágio. As fórmulas já prontas são reutilizadas e, muitas vezes, sem sequer se dar ao trabalho de ao menos disfarçá-las. O declínio da criatividade é sempre acompanhado da repetição infinita de fórmulas já testadas. Claro que os menos criativos tendem sempre a copiar aquilo que vende mais. Após o extraordinário sucesso de “O senhor dos anéis” vimos surgir uma séria infinita de autores com histórias na mesma linha alimentando as indústrias cinematográfica e editorial. Se não são plágios no sentido próprio da palavra, não se pode negar que seu objetivo é “pegar o bonde andando” do sucesso da obra de Tolkien aproveitando uma fórmula que já deu certo. Devemos admitir que o desejo de fama e fortuna rápida também contribui para isso. Não se trata apenas de falta de criatividade...
O culto à tecnologia, o declínio da leitura e o plágio como consequência poderão causar a decadência da cultura em nosso tempo? Aliado a isso tudo acrescentamos o desejo de fama (e de riqueza) rápida e teremos um universo de títulos literários e artísticos com capas diferentes (quando muito) e conteúdos semelhantes. Se vivesse nos dias de hoje o Luiz Tinoco faria muito sucesso.

Aristóteles Lima Santana, 10/03/2015

sábado, 13 de dezembro de 2014

AS OPÇÕES DE DILMA E AÉCIO

AS OPÇÕES DE DILMA E AÉCIO
Terminou a eleição presidencial, um dos postulantes ao cargo ganhou e irá tomar posse, mas o clima de campanha teima em continuar. O fato da diferença entre Dilma e Aécio ter sido pequena deixou o candidato do PSDB (e alguns dos seus eleitores) inconformado. Depois de ter descartado aliar-se à extrema-direita, o próprio Aécio de forma provocativa fez um vídeo conclamando e apoiando uma marcha contra Dilma. Pouca gente apareceu e ele mesmo  preferiu ir à praia com a família. Este episódio patético é só uma demonstração de que o PSDB flerta com a irresponsabilidade. Com a bancada forte que elegeu este partido pode fazer uma oposição responsável no Congresso. Aécio saiu-se fortalecido como liderança do pleito. Ele não precisa fazer papel de palhaço (como fez neste episódio) para aparecer. A continuar assim seu nome sofrerá desgastes irrecuperáveis.
O governo Dilma virou à direita? Grande novidade. Todos os governos do PT viraram à direita na gestão econômica. O susto com as possíveis nomeações de Kátia Abreu e Joaquim Levy são encenações tolas. Gente pior ou igual a eles já estiveram governando ao lado de Lula. O PT está fazendo o que sempre fez: um governo medíocre que administra a crise a favor do grande capital enquanto distribui migalhas aos pobres. Nada de novo no front.
O caso dos escândalos da Petrobrás ainda toma conta do noticiário nacional. Uma pedra no sapato do governo. Mas os governos do PSDB também estão atolados com denúncias de corrupção. Ambos os partidos, PT e PSDB, estão sofrendo diariamente desgastes consideráveis (e merecidamente). A ideia de que a democracia brasileira vai dividir-se entre estes dois partidos eternamente é uma falácia. Existe um caminho aberto para o crescimento de outras opções. Aliás, muito se falou de uma onda conservadora nas eleições, mas o PSOL dobrou sua votação em nível nacional.
Muito tem se falado de um impeachment de Dilma. Isso é possível? Sim, mas pouco provável. O governo tem folga na Câmara e no Senado. Recentemente houve um golpe constitucional no Paraguai. Usando o Congresso, a direita conseguiu derrubar um presidente progressista lá. O exemplo paraguaio parece encantar uma parte da oposição. O governo que fique atento. Esta é uma opção que o PSDB não vai descartar tão cedo.
A opção de Dilma em virar à direita também deve ser entendida como uma forma de garantir apoio no Congresso. As bancadas conservadoras (ruralista, evangélica, etc) cresceram e ela terá de atender a estes setores para garantir a maioria. O PT, na verdade, foi derrotado no Congresso. O caso de Pernambuco é ilustrativo: nenhum federal do PT foi eleito. O PT perdeu dezoito vagas no Congresso para outros partidos. A nomeação da Kátia Abreu (que, entre outras vilanias, quer rever o conceito de trabalho escravo para favorecer seus amigos latifundiários) é para agradar a bancada ruralista. Antes tínhamos a ala desenvolvimentista do governo, a ala reformista, outra ala social-democrata, etc. Agora Kátia Abreu liderará a ala escravocrata do governo. Para quem acha isso péssimo vai um aviso: não vai parar por ai, outros vilões serão atendidos. Tudo em nome da governabilidade.

Aristóteles Lima Santana, 13/12/2014

domingo, 30 de novembro de 2014

THOMAZ WOOD JR. COMENTA SOBRE MENTIRAS E ESTATÍSTICAS

Sobre mentiras e estatísticas
A influência do consumo de margarina na taxa de divórcios do estado do Maine e outras correlações espúrias
por Thomaz Wood Jr. — 
Benjamin Disraeli, o Conde de Beaconsfield, serviu dois termos como primeiro-ministro da Grã-Bretanha, no século XIX. Entre outras pérolas, a ele é atribuída a frase: “Há três tipos de mentiras: mentiras, mentiras terríveis e estatísticas”. Consta que o chistoso dito teria sido popularizado nos Estados Unidos pelo escritor Mark Twain. Alguns o atribuem ao próprio Twain. A popularidade da frase atravessou séculos, a alimentar nossa desconfiança dos números ou, mais precisamente, do seu uso impróprio para respaldar argumentos vazios ou duvidosos.
Tyler Vigen é um agitado estudante de Direito em Harvard. Não se sabe se é fã de Disraeli ou de Twain, mas parece ter se apoiado sobre os ombros dos dois gigantes. Vigen criou um website, Spurious Correlations, com o propósito de se divertir com estatísticas falaciosas e correlações ilegítimas. O próprio criador adverte não se tratar de fomento à descrença na ciência, mas de separar relações causais de coincidências e simples manipulações.
Vigen usa um dos métodos mais disseminados da estatística, o teste de correlação. Na análise de dados americanos, ele descobriu uma correspondência quase perfeita entre os gastos com ciência, espaço e tecnologia e o número de suicídios por enforcamento, estrangulamento e sufocação. A Nasa deve estar preocupada! Outro elo fortíssimo foi descoberto entre o consumo de margarina e a taxa de divórcios no estado do Maine. A substituição por manteiga ajudaria os casais? Ainda no campo da alimentação, foi constatada uma ligação entre o consumo per capita de muçarela e o número de doutorados em engenharia civil. Será responsabilidade das pizzas? Já o número de filmes nos quais Nicolas Cage atua apresenta associação razoável com o número de pessoas que morrem afogadas ao cair na piscina. Culpa do ator ou da qualidade dos filmes?
Qual é o truque? É simples, a ocorrência de uma correlação, mesmo forte, sugere, mas não significa uma relação de causa e efeito entre as variáveis. De fato, pode não existir relação alguma. Esse simples preceito, exposto de forma bem-humorada por Vigen, não parece sensibilizar debatedores e argumentadores balizados unicamente em sua própria opinião e na vontade de convencer incautos suscetíveis a fantasias numéricas. Entretanto, as implicações de estripulias estatísticas podem ser sérias. Correlações espúrias frequentemente mudam percepções sobre questões relevantes, influenciam decisões e podem levar a alterar políticas públicas, afetando diretamente a vida dos cidadãos.
A ciência estatística teve origem no século XVII, com as contribuições notáveis dos franceses Blaise Pascal e Pierre de Fermat. Transformou-se em profissão e em um campo científico marcado pelo rigor dos métodos e das análises. No século XX, a estatística avançou nas linhas de montagem e nas agências de propaganda, ganhou adoradores entre engenheiros e economistas. Tornou-se onipresente na academia, na vida cotidiana e na mídia. Parte considerável do progresso científico está sustentada pela estatística, por técnicas que permitem analisar e testar correlações. Sintomaticamente, muitos artigos científicos das ciências humanas, exatas e biomédicas parecem textos matemáticos, inundados por hipóteses, fórmulas e tabelas.
Juntamente com virtudes vieram alguns vícios. Estudantes de doutorado logo aprendem a “torturar os números”, para “confessarem” os resultados esperados. Técnicas de “engenharia reversa” são frequentemente utilizadas. Primeiro, se estabelecem os resultados e, depois, os meios para chegar a eles. Manipulações grosseiras são denunciadas, mas outras, mais sutis, podem passar despercebidas.
Alguns resultados transcendem a academia e são filtrados, reembalados e, vez por outra, distorcidos pelas mídias de massa. Uma causa provável, aplicada a uma amostra restrita, pode, pela força de uma manchete, tornar-se verdade absoluta e influenciar opiniões e comportamentos. O uso espúrio da estatística provavelmente faria Disraeli e Twain contraírem cinicamente a sobrancelha esquerda, ou a direita, ou ambas. Mas essa correlação é de difícil comprovação.
FONTE: site de Carta Capital.


terça-feira, 18 de novembro de 2014

SOBRE AS ELEIÇÕES 2014

ELEIÇÕES 2014
Como será conhecido no futuro o resultado das eleições de 2014? A “eleição do ódio” é um forte título, mas a “mais disputada” pode ser um que muitos prefiram. Ambas as alternativas contemplam a perspectiva de observação de muitas pessoas. Não sei como será daqui em diante, mas já aconteceram duas passeatas pós-eleitorais. Algo nunca acontecido antes. A direita saiu em São Paulo pedindo golpe militar ou impeachment sobre Dilma e, alguns dias depois, uma parcela da esquerda deu uma resposta com outra passeata com slogans socialistas. Nas redes sociais os debates (e combates) sobre as eleições continuam e, da direita à esquerda, destila-se um ideologismo barato sem muita consistência, mas propagador de uma boa dose de confusões.
Por falar em redes sociais, podemos concluir que o resultado apertado favorável a Dilma só foi conseguido graças a elas. Milhões de eleitores viraram militantes on-line. Claro que isso aconteceu com todas as forças políticas envolvidas na disputa, mas os que apoiavam o PT esforçaram-se mais. Sem ter espaço na grande mídia, usaram a pequena mídia com muito mais intensidade. O apoio de uma direita ressentida, agressiva, racista e golpista dado abertamente nas redes sociais ao candidato do PSDB assustou cidadãos e militantes no Brasil inteiro. O próprio Aécio Neves em entrevista recente (pós-eleitoral) declarou: “não ser de direita”, tentando desvencilhar-se de Bolsonaro e seus seguidores fanáticos.
Sobre Aécio Neves pode-se afirmar que ele é um dos grandes vencedores do pleito, mesmo com sua dupla derrota em Minas Gerais. Excetuando-se FHC, ele foi o candidato do PSDB que foi mais longe em uma disputa com o PT pela presidência. E olha que sua candidatura tinha tudo para naufragar. O escândalo que envolveu seu amigo, o senador Perrela, com um helicóptero cheio de cocaína, seria suficiente para abalar suas pretensões. Ele ainda teve de enfrentar a possibilidade de não ir para o segundo turno com o fenômeno Marina, surgido logo após a morte de Eduardo Campos.
No Congresso o resultado foi paradoxal. Em termos numéricos o governo tem maioria: 304 dos 513 deputados federais eleitos são da base aliada e 53 dos 81 senadores também. Mas em termos programáticos o Congresso piorou. Aumentaram as bancadas conservadoras (ruralistas, evangélicos, bancada "da bala”, etc), ou seja, grupos avessos aos movimentos sociais e a todas as bandeiras progressistas. Tais grupos possuem aversão ao PT e foram seus seguidores que organizaram a marcha pedindo um novo golpe militar. É bom não esquecer que por “base aliada” entenda-se uma miríade de grupos que incluem conservadores e oportunistas de plantão, que só estão lá porque possuem cargos e influência no governo. O relacionamento com o Congresso talvez seja tumultuado, mesmo o governo tendo maioria. Mas o governo tem fôlego, é bom lembrar que uma parcela da oposição também pode ser comprada com cargos...
Não é difícil explicar o porquê desta eleição ter sido tão acirrada. Um clima de “mudancismo” provocado pelas rebeliões do ano passado aliado ao denuncismo midiático espetacularizado; um desgaste natural de um partido que acumula doze anos no poder e um novo conceito de militância nas redes sociais (por parte da oposição também) foram suficientes para ameaçar o PT. Todo esse acirramento levou a que muitos refletissem sobre um Brasil que teria saído dividido após as eleições. Mas o Brasil sempre foi dividido. Essa divisão desperta e mostra-se em alguns momentos históricos, mas ela é permanente. E não poderia ser diferente em um país cheio de contradições e com uma concentração alta de renda e poder.
Aristóteles Lima Santana, 17/11/2014.


terça-feira, 16 de setembro de 2014

COMPLEXO DE VIRA-LATAS

O COMPLEXO DE VIRA-LATAS
Durante a Copa do Mundo falou-se muito do complexo de vira-latas por causa das críticas à organização deste evento esportivo. A expressão foi criada por Nelson Rodrigues justamente em referência ao desastre da derrota na final de 1950, ou seja, da primeira copa organizada no Brasil. Após a derrota contra o Uruguai, os brasileiros haviam ficado, segundo Nelson, com complexo de inferioridade achando que nada daria certo em nosso país, nem mesmo Copa do mundo. Pobre Nelson, ele não poderia imaginar que uma catástrofe maior aconteceria em 2014 perante a Alemanha...
Embora o Nelson Rodrigues tenha criado esta expressão após 1950, a origem do problema é bem anterior. Ela vem da colonização e tornou-se tema de debates após a independência. A elite branca de origem portuguesa gostava de possuir negros escravos, mas detestava o fato óbvio de que durante a colonização houve um processo de miscigenação da população. A mistura racial foi mal vista desde o início e para este mal estar contribuíram muitos pensadores europeus e brasileiros. Quem iniciou a quebra deste paradigma foi Gilberto Freire, cujo trabalho consistiu justamente em realçar a miscigenação. Mesmo que o conceito equivocado de “democracia racial” seja uma consequência de suas teorias, ainda assim sua contribuição foi um choque para aqueles que defendiam o ideal de “raça pura”.
Assim, o tal complexo de vira-latas, a ideia de que no Brasil nada dará certo, vem deste mal estar que a elite brasileira sentia com a mistura de raças. Aliado a isso veio o deslumbre com a modernidade europeia e norte-americana. O desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo fez de algumas nações peças centrais da modernidade e o resto ficou como “periferia”. A noção de que pertencemos à periferia afetou ainda mais a autoestima da elite brasileira. Aumentou a admiração e o desejo de imitar a elite destas regiões centrais. Embora hoje tenhamos consciência de que aprender línguas estrangeiras é fundamental para o crescimento cultural do indivíduo, por proporcionar que ele tenha acesso a uma variedade maior de informações, não foi por este motivo que nossa elite (notadamente a carioca) aprendeu o francês no século XIX. Foi mais por esnobismo e imitação barata do estrangeiro, embora tenham existido também honrosas exceções.
Mas este complexo de vira-latas não se desenvolveu sem contradições. Seria possível existir um ódio puro ao país ao qual se pertence? É bom lembrar que este fenômeno se desenvolve paralelo à formação do Estado nacional e seu correlato ideológico que é o nacionalismo. O romance “Gracias por el fuego”, do escritor uruguaio Mario Benedetti, em seu primeiro capítulo explora um pouco e escancara esta contradição. Quinze uruguaios, homens e mulheres, todos pertencentes às famílias mais ricas do Uruguai, encontram-se em um restaurante  em uma grande cidade norte-americana. Entre apresentações e flertes surge nas conversas  comparações entre o Uruguai e os EUA. O deslumbre com a nação estadunidense destaca-se ao lado do descrédito com a nação sul-americana de origem. Uma senhora chega a declarar que tem “vergonha de ser uruguaia”. Um deles levanta-se e vai atender a um telefonema. Ao voltar completamente transtornado e abatido narra que uma catástrofe de proporção gigantesca atingiu o Uruguai. O país foi atingido por um maremoto seguido de chuvas torrenciais que causaram uma inundação de proporções diluvianas. O país estava todo destruído, inundado e com milhares de mortos.
Só um narrador como Benedetti conseguiria descrever uma mudança tão extraordinária no tom da conversa. De desprezo pelo Uruguai surgem de forma súbita o apego e o amor pela pátria e por seu povo. Os supostos cosmopolitas tornam-se provincianos apaixonados pela terra natal. O que o autor uruguaio demonstra é que no fundo o complexo de vira-latas não passa de uma máscara ideológica para ocultar o provincianismo da elite. Encantada com a modernidade dos países centrais ela tenta vestir uma roupa que lhe interessa, mas que não lhe cabe...
A Globalização, tão decantada em verso e prosa pela elite brasileira e mundial, trouxe a ilusão de que valores culturais nacionais estariam em decadência e de que finalmente havia chegado o tempo do cosmopolitismo universal. Mas hoje um dos fenômenos das contradições desta mesma globalização é justamente um fortalecimento de valores culturais nacionais, na maior parte das vezes com viés conservador nacionalista ou religioso. Podemos concluir que há uma tendência de aumento do provincianismo em vastas camadas da população mundial. Isso fará com que aumente o fosso da distância destas massas com as elites que, apegadas à sua máscara de modernidade neoliberal, tenderão a se tornarem mais ainda presas ao complexo de vira-latas.

Aristóteles lima Santana, 16/09/2014.